sábado, 4 de outubro de 2008

Sobre sermos todos comíveis!

Bem vindos ao blog sobre tema, um espaço que 4 artistas fotográficos criaram pra expor suas idéias sobre determinado tema. Sabendo q nada existe só, veremos aqui no blog um tema se desdobrar em mil, pois como falar de animalidade sem falar de deus, consciência e política? Seria como fazer arroz sem água, sal e óleo. 

Quando o tema foi lançado estávamos numa mesa de bar, João foi quem insinuou contando sobre um assalto que lhe ocorreu, e não me lembro como, estávamos com o desafio na mão: representar a porção bicho do homem. Onde o homem se assemelha a instintiva brutalidade dos animais? 

Uma vez fui supreendido por um livro de biologia que mostrava o esqueleto de animais. Quase todos tem a mesma estrutura, cabeça, tronco, pernas e braços. Na época fiz uma pintura entitulada A similaridade dos animais, e agora isso me volta como tema. A primeira sensação que tive foi homogenizar a pele, misturar as tramas, fundir as espécies. Isso me despertou uma vontade louca de gritar ao mundo que os humanos são além de carne, consciência e que o que nos difere é a simples organização dos valores e o controle do instinto. Dai me veio a noção de superioridade, mas num mundo como o nosso, como ser superior às formigas? Temos organização mas morremos de guerra e de fome. Por outro lado como achar que os animais são superiores, se os leões comem as gazelas indefesas e nem levam ao forno? 

Convidei o Ronan Gonçalves, um performer goiano, para o desafio de ser fotografado com a pele maquiada e um pedaço de bife. Engraçado que sua primeira reação foi de nojo da carne crua sangrando. Em minha cabeça eu pensava: carne com nojo de carne? Somos lacrados pela pele, mas pulsamos sangue por dentro: precisamos de uma mesa, de faca, de prato e garfo. Tempos depois estavamos nós na noite, mesa posta, bife sangrando, Ronan encarnado em bicho, num ambiente claro, quase espírita. Burocrático na roupa, a alma inquieta, curiosa, vaidosa de se expor a vista do mundo, o sangue vermelho pulsando contido como a carne na mão. Primeiro flash e ao final da sessão eu tinha um Ronan bicho, sujo de sangue de bicho. Mordendo e lambendo a carne quase em transe. No resultado  das fotos: um ser aberto, com o rosto caindo no prato, num surto de violência instintiva. Somos bichos ou não?

Dai, mil idéias depois, numa conversa com Mme Lard, nos veio essa imagem: uma mulher com cabeça de porco. Dias depois, açougue, cara de porco aberta na mão, lá fui eu costurar. Na pia limpei o resto de carne e deixei apenas a pele. Ali meu contato já não era mais com a carne, e sim com a pele (dizem q a pele de porco é a mais semelhante a do homem) e quando terminei de costurar o rosto dele, tive medo. Medo de sua alma, mas ser humano não é ter consciencia? E isso não é a alma? Então onde está a alma do porco? Preferi acreditar que era apenas um pedaço de carne, pedi licença a Deus, temendo a alma do porco, seus olhos vazios naquela carcaça, ai Mme chega, me salva e começa a sessão.

Mme despida e a difícil tarefa de vestir aquela máscara fedida, com cheiro de morte, cheiro de vazio. Ela sufocada por aquele animal, numa distância de classes, uma superioridade estabelecida sobre aquela comida transformada em arte! Durante a sessão eu via um bicho estranho e divertido se firmar, os olhos vazios e o focinho caido davam uma impressão estranha de sorriso, de mulher nua, de deboche, cada pose dela me fazia muita graça, laço de fita na cabeça, um misto de beleza e horror rindo de mim, de nossa vida, de nossa impressão da vida. E em minha cabeça eu pensava que a morte nos iguala, e nela não existe diferença pro corpo. Sobre a alma? Não sei, nem morri ainda! Mas tive a certeza de que quero voltar a vida como humano e ter a deliciosa superioridade de escolher, construir, brincar, amar e deitar a cabeça no colo de meus amores. Nesse ponto a Mme Lard tinha virado uma Eva de geração estranha, uma Eva mista, oferecendo sua maçã ao homem carnivoro, rindo, apontando e debochando dele.

"É o bicho, é o bicho, é o bicho é o bicho malandragem, eu falei que é o bicho" - Bezerra da silva





Um comentário:

Anônimo disse...

Uma Eva que se oferece cega ao bicho-homem mas sem jamais deixar de zombar dele.
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Paradoxos do cotidiano...